A abolição da escravatura e o ouriço-preto da Mata Atlântica
Se você é capixaba, provavelmente conhece ou pelo menos já ouviu falar sobre a região do Caparaó. Mas se você não é do Espírito Santo, não se preocupe, a gente descreve para você. Imagine estar em uma mata, com altas árvores, ar úmido e fresco, ouvindo o canto dos pássaros, ao longe, o barulho de águas, uma região alta, de temperaturas mais baixas e uma natureza impactante. Assim é a região do Caparaó no Sul do Espírito Santo, região composta por boa parte da Mata Atlântica.
A Mata Atlântica é um bioma que abrange a costa leste, sudeste e sul do Brasil, além do leste do Paraguai e a província de Misiones, na Argentina. O desenvolvimento ecológico da Mata Atlântica começou a evoluir no período histórico mais recente, quando os continentes já estavam distribuídos como conhecemos hoje. O ser humano já ocupa esse bioma há mais de 10 mil anos e do século XX em diante essa floresta tropical passou por um desmatamento intenso restando menos de 20% da versão original.
No Espírito Santo a Mata Atlântica se estende por uma área de 45.597 km2. Porém o Estado já foi 100% coberto pela vegetação. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Mata Atlântica capixaba é composta por uma diversidade de espécies e vegetações. A Serra do Caparaó é um refúgio para essa diversidade, o relevo caracteriza-se como montanhoso, com altitudes que vão desde o nível do mar até 2.897 m, o ponto mais alto é o famoso Pico da Bandeira.
Infelizmente as regiões de preservação ecológica não representam a maior porcentagem da Mata Atlântica. O desmatamento gerou muitos riscos à biodiversidade provocando ameaças de extinção a várias espécies que têm esse bioma como habitat. Uma dessas espécies você pode ver de perto na exposição do Muses, é o Ouriço-Preto, exclusivo da mata atlântica
De acordo com a IUCN - União Internacional para Conservação da Natureza e Recursos Naturais - o Ouriço-preto (também chamado de Luis-cacheiro-preto, Gandú e Boré) é natural da Mata-Atlântica e ocorre do sul de Sergipe até o norte do Rio de Janeiro e se encontra vulnerável à extinção segundo a última avaliação em 2016. Pertencentes à Família Erethizontidae, os Ouriços-pretos são de hábito arborícola, ou seja, vivem na copa de árvores, são noturnos e herbívoros, preferindo habitats naturais com complexidade ecológica em vez de habitats planejados pela espécie humana. Essa espécie é a única de sua Subfamília (Chaetomyinae) e data do Oligoceno (± 30 milhões atrás).
Medem de 3,8 a 4,5cm de comprimento e pesam entre 1,5 e 2Kg. Apesar de carregar o nome de Ouriço-preto sua coloração está mais perto do marrom e pode possuir manchas brancas também. Seus pelos são modificados em espinhos, o que dá a eles o nome popular de porco-espinho. A diferença desta espécie para os outros porcos-espinhos é que seus espinhos são restritos à região Anterior do corpo (cabeça, pescoço e membros anteriores). São folívoros, ou seja, se alimentam de folhas, geralmente mais jovens, em vez de folhas mais velhas. Possuem uma gestação de aproximadamente 60 dias e normalmente tem uma prole de um só filhote. Com o desmatamento da mata atlântica essa espécie perdeu muito de seu habitat natural, sofrendo muito com a separação entre as populações principalmente pela construção de rodovias que separam segmentos de mata que impedem a comunicação entre as populações que ficam em cada lado. Com isso as populações que vivem próximas ficam muito restritas à endogamia, que nada mais é que a reprodução entre indivíduos próximos geneticamente (pais, irmãos, tios, etc).
Um fator importante para a sobrevivência de uma espécie é a variabilidade genética (padrões diferentes de DNA em cada indivíduo da espécie). Quanto maior a variabilidade genética de uma espécie, melhor, pois características nocivas, como alelos letais ficam cada vez menos comuns na população geral e é aí que a endogamia age. Um alto índice de endogamia faz com que, geração após geração, a população que está sofrendo endogamia perca heterozigotos (os famosos Aa), produzindo uma grande taxa de indivíduos homozigotos (AA ou aa) para várias características nocivas, que a heterozigose (presença de alelos diferentes) pode ajudar a atenuar.
Uma grande ação para a conservação de uma espécie que possui ameaça de extinção pela separação das populações permanentes, é arranjar formas de fazer com que populações que estavam separadas há algumas gerações voltem a ter contato para que misturem seus genes, assim as proporções genéticas voltam para um valor “saudável”.
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade é hoje uma das grandes referências nacionais em ações para combater as ameaças que as Espécies sofrem de extinção. São inúmeros planos de ação feitos todos os anos que visam agir diretamente nos desafios que a espécie em questão está sofrendo que a deixa em situação de risco. Atualmente há um projeto em curso do ICMBio com objetivo de agir diretamente nas perdas de habitat e pressão de caça que o ouriço-preto sofre. São pesquisadores de várias partes do Brasil agindo na preservação dessa Espécie.
Os riscos para a espécie são muitos, sendo a caça ilegal, perda de habitat e atropelamento alguns deles. O exemplar de ouriço-preto presente no Muses é um exemplo disso, pois é um animal que foi encontrado atropelado em uma rodovia e foi doado ao museu. Hoje ele se encontra em exposição taxidermizado (empalhado).
Durante o período escravagista a Mata Atlântica ainda tinha grande parte de seu território original. Hoje em dia esse bioma encontra-se muito ameaçado, uma vez que resta muito pouco da vegetação original, já que grande parte foi devastada pelo ser humano, como já mencionado. Se você mora no Espírito Santo, por exemplo, você vive em uma área em que antes era toda composta pela Mata Atlântica. Essa floresta tropical além de abrigar fauna e flora riquíssimas, também foi cenário de muitos acontecimentos históricos.
No período da escravidão por exemplo, a Mata Atlântica foi refúgio para os ex-escravos que fugiam e buscavam abrigo nos quilombos. Os quilombos foram formados na época da escravidão, a partir da reunião de diversos escravos fugitivos. Os quilombos eram como comunidades, localizadas em regiões de difícil acesso, por isso eram comuns em meio a mata. O objetivo era impedir a recaptura dos escravos fugidos.
Era nos quilombos que esses escravos encontravam uma nova possibilidade de viver, era um espaço de resistência. A escravidão no Brasil foi uma prática marcada por diversas manifestações de resistência, os quilombos eram símbolos dessa luta. O processo para o fim da escravidão foi longo, doloroso e de muita resistência e passou por muitas Leis até que a escravidão fosse efetivamente extinta em 1888.
A Lei Antitráfico
Toda essa história perdurou por 3 séculos, quando em 7 de novembro de 1831 se inicia uma série de eventos que ameaçam a política escravagista no Brasil. Neste dia foi assinada a Lei antitráfico, também chamada lei Feijó, que assegurava liberdade a todo escravo que fosse importado ao Brasil a partida daquela data. Esta lei garante que o Brasil esteja mais próximo das políticas inglesas, pois a Inglaterra já havia iniciado há cerca de 3 décadas a abolição da escravatura em suas colônias. Esta lei então começa a inclinar o Brasil às vontades inglesas, o que era de grande interesse também para a própria Inglaterra. Entretanto a fiscalização era muito pobre e por isso essa lei teve muito pouco impacto na redução efetiva do tráfico de escravizados. Por essa razão essa lei ficou conhecida popularmente como “lei pra inglês ver”, nome que deu origem à famosa expressão “pra inglês ver”.
Lei Bill Aberdeen
Como já mencionado a Inglaterra tinha uma grande influência no mundo no século XIX, principalmente pelo seu grande potencial militar marítimo, que os fazia grandes “predadores” marítimos, para as nações que não estivessem de acordo com suas decisões. Com isso o então secretário do Estado para assuntos estrangeiros, George Hamilton-Gordon, decretou uma lei em 1845 que dava autorização à marinha britânica para atuar de forma rígida como “fiscalizadora” para tráfico de negros durante aquele período em que o Brasil resistia às pressões inglesas pela abolição da escravatura. Durante esse período muitos navios negreiros foram interceptados em curso da África para o Brasil transportando corpos negros ilegalmente, uma vez que o tráfico de negros já era ilegal desde 1831.
Lei Eusébio de Queirós
Nos cinco anos que sucederam a lei Bill Aberdeen o Brasil seguiu resistindo às pressões inglesas pela abolição à escravatura. Muito se dizia sobre a Bill Aberdeen ser uma lei inglesa e, por isso, não teria eficácia em território nacional. Esse cenário muda quando em 4 de setembro de 1850 o então ministro da Justiça Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara promulga uma lei que recebeu seu próprio nome. Essa lei proibia que navios que carregassem negros atracassem em portos brasileiros. Com essa lei o fluxo de escravizados vindo da África sofreu uma redução significativa, porém não foi totalmente interrompido. Além do tráfico vindo da África, no Brasil cresceu o tráfico interprovincial em resposta a essa nova lei. A partir de 1850 foi possível perceber um grande fluxo migratório das regiões norte e nordeste do país em direção ao sudeste e centro-oeste, que eram as regiões predominantemente cafeicultoras. Em adição a isso havia também a mão de obra imigrante vinda da europa, principalmente de países como Alemanha, Itália e Espanha.
O Movimento Abolicionista e a Pressão pelo Fim da Escravidão
No meio de todos esses eventos jurídicos que apontavam para a abolição oficial da escravatura, também existiam os movimentos de base que tinham como objetivo pressionar as autoridades para que a abolição fosse de fato decretada. Jornalistas, escravizados e até membros do legislativo se movimentaram para que o executivo optasse definitivamente pela abolição da escravatura.
Há artigos jornalísticos de figuras como Luís Gama e José do Patrocínio, ambos homens negros, que se libertaram da escravidão e conseguiram ascender à elite intelectual brasileira como advogado e farmacêutico respectivameante. Estes homens faziam pressão por meio de seus artigos jornalísticos para que seus iguais fossem libertados.
Houve também o apoio de homens como Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, membros do legislativo, que faziam pressão de dentro dos órgãos governamentais para que o executivo se dobrasse à abolição.
Por fim houve aqueles que fizeram combates no sentido literal da palavra. Escravizados e escravizadas que organizaram revoltas nas senzalas e fizeram eclodir vários movimentos de base que visavam pressionar as entidades competentes para que fossem libertos. Os sistemas ferroviários da época foram de grande auxílio nesses movimentos, uma vez que era fácil unir esforços com outras senzalas por meio dos trens que passavam por várias delas.
O “Fim da Linha”
Todas essas pressões geradas por esses movimentos abolicionistas causaram muita instabilidade no Brasil do século XIX. Por um lado havia os senhores de engenho que não queriam abrir mão de sua mão de obra escrava, mas por outro lado havia uma pressão tanto diplomática, como a da Inglaterra, por exemplo, como uma pressão popular, vinda do movimento abolicionista, para que fosse assinada a abolição da escravatura. É aí que em 28 de setembro de 1871 a princesa imperial regente promulga a Lei Nº 2.040, também conhecida como “Lei do Ventre Livre” que declara todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir daquela data livres da escravidão. Contudo as crianças ficariam sob tutela do senhor de sua mãe até os oito anos de idade. Em seu aniversário de oito anos, o senhor deveria fazer uma escolha entre libertar a criança e receber indenização do Estado, ou continuar com ela até os 21 anos de idade.
Em adição veio a Lei dos Sexagenários em 28 de setembro de 1885 que, entre várias outras coisas, ficou famosa com o nome que tem pois previa que todo escravizado que atingisse os 60 anos de idade estaria livre de seus deveres para com seus senhores. Um fato curioso é que era quase impossível um escravizado atingir tal idade, dada a vida de exploração que viviam, e os que chegavam estavam debilitados demais para viverem sozinhos e sequer tinham um lugar para ir, então acabavam ficando junto de seus senhores.
O Fim Oficial da Escravidão no Brasil
Em 1888 Dom Pedro II sofria muitas pressões dos movimentos republicanos e pelos militares e estava num período muito afastado das terras brasileiras. É quando D. Pedro II decide deixar a coroa para sua filha Isabel governar com seu marido. Após assumir como princesa imperial regente, Isabel em 13 de Maio de 1888 assina a Lei Nº 3.353 que ficou conhecida como Lei Áurea, que tornou declarou extinta a prática de escravidão em território brasileiro.
A Lei Áurea tornou crime a prática de escravidão no Brasil, mas seu conteúdo se resume basicamente a isto: criminalizar a escravidão. Não há quaisquer medidas de reparação, subsídio ou assistência aos homens e mulheres escravizados que foram libertos do trabalho escravo legalmente. A lei não previa qualquer assistência médica para cuidar das lesões causadas pelos maus tratos nas senzalas, ou oportunidades de emprego, ou sequer moradia para aqueles que de repente não tinham mais lugar para ficar. Essa Lei teve papel na modificação do status jurídico do negro de objeto para humano, porém não teve nenhuma contribuição imediata para a modificação do status social do negro de 1888 para um ser humano com direitos como todos os outros que participavam da sociedade. Não demorou muito para ser atribuída à população negra (principalmente masculina) o nome de “vadios” pois viviam vagando pelas cidades sem ter onde morar ou emprego para obter sustento. Toda essa situação implicou na construção de um Brasil que ainda hoje é um país racista, desigual, que coloca o corpo negro a margem da sociedade. Por isso, mesmo que a escravidão tenha chegado ao fim em 1888 a luta do povo negro por igualdade social permanece até os dias de hoje. O corpo negro segue resistindo.