Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/a-revolta-de-maio-de-68-na-franca-atraves-dos-cartazes-feitos-na-epoca.ghtml
No turbilhão que agitava Paris em maio de 1968, alunos e professores ocuparam a tradicional escola de Belas Artes e deram início à produção de centenas de cartazes que serviram para mobilizar grevistas e militantes. Colados nas ruas da cidade, eles ganharam notoriedade internacional e demonstram a convergência da arte com as lutas políticas da extrema-esquerda.
Há exatos 50 anos, a França mergulhava num período de intensa turbulência política quando protestos de movimentos estudantis se alastraram para os trabalhadores, levando a greves e protestos multitudinários, além de intensos confrontos com a polícia.
Produzidos às pressas e com aparência muito simples, os cartazes sintetizam os objetivos da revolta, como a crítica ao governo do general Charles De Gaulle, ao capitalismo e à violência policial. São imagens e slogans produzidos coletivamente que viraram ícones de uma época e permanecem na memória coletiva dos franceses.
Cartaz traz Daniel Cohn-Bendit, um dos líderes da revolta de Maio de 1968, com a ‘legenda nós somos...
Em 14 de maio daquele ano, a escola de Belas Artes, às margens do Rio Sena, foi ocupada por alunos e professores. Bem rapidamente, artistas, alguns bastante conhecidos, também se integraram ao que ficou conhecido como Ateliê Popular. Durante um pouco mais de um mês, foram produzidos e divulgados 350 cartazes, porém o número total de projetos nunca foi estimado.
Os manifestantes queriam participar diretamente das lutas políticas e sociais e não ser apenas testemunhas, afirma Eric de Chassey, um dos responsáveis pela exposição “Images en Lutte”, que está em cartaz em Paris até 20 de maio.
“Eles antecipavam certas lutas, organizavam certos combates em um momento – é preciso lembrar- vivido por um grupo como verdadeiramente revolucionário. Havia 7 milhões de grevistas, os estudantes invadindo as escolas, os escritórios estavam fechados. Uma parte da sociedade francesa pensava que ela ia mudar radicalmente”, afirma Chassey, que também é diretor-geral do Instituto Nacional de História da Arte (INHA)."
Nos cartazes não se vê assinaturas, apenas a inscrição Atelier Populaire. Os manifestantes tinham uma maneira muito peculiar de trabalhar: propunham os projetos, mas eles só eram produzidos em larga escala após serem aprovados por uma assembleia. Nas decisões sobre slogans e imagens pesavam mais as mensagens políticas do que as preocupações estéticas.
Assembleia Geral, maio de 1968 — Foto: ©Philippe Vermès/ Beaux-Arts de Paris
Rapidez na produção
“O que se produziu ali é bem oposto ao que se produzia na tradicional escola de Belas Artes”, afirma Chassey. “O estilo dos cartazes, que acaba sendo bem diverso, surge da urgência e dos meios muito limitados de produção. Era preciso encontrar os meios mais eficazes e menos complexos possíveis”, observa.
Estudantes e artistas do Ateliê Popular começaram fazendo litografias, mas a produção ficava muito limitada. Eles optaram, então, pela serigrafia, que permitia fazer milhares cartazes muito rapidamente.
Cartazes expostos em parede do Ateliê Popular, na Escola de Belas Artes de Paris, em maio de 1968 —...
Eles usavam diferentes tipos de papel, como reciclado, de cartazes e de jornal, e buscavam esse material em toda parte, uma vez que não tinham dinheiro para comprá-lo. Funcionários de jornais em greve, como "Le Figaro", doaram rolos de papel jornal aos estudantes e artistas a fim de contribuir com o movimento.
Simplicidade aparente
Chassey ressalta que a simplicidade é apenas aparente, porque os cartazes tinham que ser produzidos rapidamente. No primeiro produzido pelo Ateliê Popular se lê: Usine, Université, Union (Usina, Universidade, União). “Não é frase solta no ar”, afirma Eric de Chassey. Um dos principais sinais da força do movimento para mudar a sociedade, no olhar dos manifestantes, era justamente a união dos trabalhadores e estudantes.
Usine, Université, Union (Usina, Universidade, União, em tradução livre) — Foto: Atelier Populaire/...
“Quando a gente começa a olhar o cartaz com mais cuidado, a gente vê que tem uma complexidade por trás”.
Ele cita como exemplo o cartaz em se que lê “Travailleurs français et immigrés unis” (trabalhadores franceses e imigrantes unidos). “Nenhum elemento é colocado ao acaso na composição, que tem dois personagens que unificam os punhos e um 3º pequeno com um chapéu, que representa o patrão.
Trabalhadores franceses e imigrantes unidos — Foto: Atelier Populaire/ Beaux-Arts de Paris
“Um personagem é colorido, o outro tem só o contorno, fazendo uma referência à diversidade da cor da pele. As proporções entre as mãos e braços, entre o tamanho do personagem com chapéu [o patrão] com relação aos outros dois, também trazem uma mensagem. Tudo isso é muito complexo, mas se resume em uma imagem muito direta”, analisa Chassey.
Principais temáticas
É preciso entender um pouco do contexto que levou a França a entrar em ebulição para entender as mensagens combativas dos cartazes, que eram distribuídos nos comitês de greve, nas ocupações e colados aos muros.
Contra o capitalismo
A França atravessava um momento de grande prosperidade econômica, no pós-guerra, conhecido como os "Trinta Anos Gloriosos", porém o fruto desse período não era necessariamente revertido na forma de renda ou direito para os operários, que estavam submetidos a uma intensa rotina de trabalho.
Imagem de arquivo mostra manifestação no Quartier Latin, em Paris, em maio de 1968 — Foto: AFP
Desde 1967, os sindicatos vinham organizando paralisações para denunciar as más condições de trabalho e pedir uma melhor remuneração. Pouco a pouco, a crítica contra o capitalismo se torna cada vez mais contundente entre os militantes da extrema-esquerda.
O punho cerrado, símbolo da resistência, é reproduzido de diferentes maneiras.
Punho fechado simboliza a resistência — Foto: Atelier Populaire/ Beaux-Arts de Paris
Uma das frases que se tornou mais comum foi "Os capitalistas precisam dos operários – os operários não precisam dos capitalistas" (“Les capitalistes ont besoin des ouvriers - les ouvriers n’ont pas besoin des capitalistes”) ou o "Patrão precisa de você, você não precisa dele" ("Le patron a besoin de toi, tu n'as pas besoin de lui").
‘O patrão precisa de você, você não precisa dele’, diz cartaz — Foto: Atelier Populaire/ École de Be...
Fora De Gaulle
O general Charles de Gaulle (presidente de 1959-1969), que liderou a resistência e conduziu a França a se libertar da ocupação nazista, era visto pelos oponentes como autoritário e insensível à injustiça social vivenciada pelos operários.
Charles de Gaulle sempre era retratado como um personagem de nariz grande e usava um chapéu, lembrando sua patente militar.
Presidente Charles de Gaulle é sempre representado com um nariz grande — Foto: Atelier Populaire/ Re...
O cartaz mais célebre deles, que chegou a ganhar repercussão internacional, recupera uma expressão utilizada em um discurso pelo então presidente: “La chienlit”, que quer dizer “baderna” ou “confusão” (em uma tradução livre). No cartaz, os manifestantes afirmam que “La chienlit c´est lui” ou “Ele é bagunça”, em uma crítica direta contra a sua administração.
Denúncia da violência policial
Desde o começo do mês, as manifestações populares eram violentamente reprimidas. Em princípio, as tropas de choque expulsam os estudantes que haviam invadido a universidade de Nanterre e, dias depois, a Sorbonne.
Os protestos tomam as ruas, os estudantes constroem barricadas e enfrentam a polícia com paralelepípedos. A repressão policial é intensa e se torna tema bastante presente nos cartazes. Vários deles faziam uma comparação entre a polícia francesa e a SS, força de elite do regime nazista.
Policial é retratado em cartaz como oficial nazista — Foto: Atelier Populaire/ École de Beaux Arts
É proibido proibir
Mas a luta de Maio de 68 também era pela defesa dos direitos das mulheres e dos homossexuais. O espírito de “é proibido proibir”, que ganhou inscrições nos muros franceses naquela época – inspirando a tropicália brasileira – , evidenciava o desejo de liberação sexual da juventude da época.
Desilusão e o retorno à rotina
Apesar da pressão sofrida ao longo de maio, o governo De Gaulle consegue retomar o controle da situação. O governo acena com aumento no salário mínimo, dissolve o parlamento e convoca novas eleições. Um milhão de franceses se reúne na Avenida Champs Elysées em manifestação de apoio ao general.
Um cartaz ironiza a volta ao normal (Retour à la normale) mostrando um rebanho de ovelhas caminhando obedientemente na direção da empresa. O movimento estudantil perde o fôlego e, pouco a pouco, a agitação que viveram os trabalhadores franceses naquele maio de 1968 vai ficando na memória.
Retorno à vida normal — Foto: Reprodução/ Atelier Populaire/ Bibliothèque Nationale de France
Para alguns, o desânimo é inevitável, para outros a luta estava apenas começando. A polícia esvazia o Ateliê Popular.
A luta continua — Foto: Atelier Populaire/ École de Beaux Arts
Slogan 'a luta continua', combinando desenho do punho levantado e forma de uma empresa — Foto: Ateli...